sábado, 30 de abril de 2011

Em 1942 Ucrânia e Alemanha travaram o Jogo da Morte, uma partida de futebol reinventada pela propaganda soviética.


Jornal O Globo: 29/04/2011


Agosto de 1942.  No meio da guerra, com a Alemanha se expandindo por toda a Europa, um embate entre dois times amadores, um ucraniano e outro alemão, está prestes a acontecer. A disputa, travada no tímido Zenith Stadium, em Kiev, é ainda hoje cercada de boatos e associada ao fim trágico de, pelo menos, cinco atletas. Não à toa, é conhecida como Jogo da Morte. Uma nova versão do embate, entretanto, vem sendo objeto de estudos.

Vencida pelos ucranianos por 5 a 3, a partida foi maquiada de tal forma pela propaganda stalinista que seus reais acontecimentos só foram conhecidos muito após a queda da União Soviética. Ainda assim, a versão fantasiosa permanece sendo a mais divulgada. E foi graças a ela que seus jogadores ganharam estátua no estádio - rebatizado para Start Stadium, nome do time vitorioso -, dois filmes e pelo menos dois livros. Talvez a pesquisa mais extensa tenha sido do escritor britânico James Riordan, autor de "The Match of Death" (O jogo da morte, em tradução livre), que entrevistou filhos de jogadores e pessoas que viram a partida.

Em 1942, a Ucrânia era apenas uma das colônias do Terceiro Reich. Mas o império nazista já encontrava pedras em seu caminho pela Europa. Adolf Hitler, que alcançara o zênite de seu poder dois anos antes, via seu exército ser gradualmente escorraçado da União Soviética.

Os ucranianos resistiram o quanto puderam à ocupação. Até 15 milhões deles teriam morrido durante a Segunda Guerra Mundial. Sua contestação aos alemães fez Hermann Goëring, fundador da Gestapo, determinar a morte de todos os homens com mais de 15 anos.

A cúpula do Reich foi ainda mais longe: nomeou como administrador do novo território Erich Koch, um dos mais sanguinários comandados de Hitler. Seus sentimentos em relação ao território que governava podem ser resumidos em sua frase: "A Ucrânia não existe... é apenas um conceito geográfico."

Os punhos de ferro de Koch eram, volta e meia, desafiados por rebeldes. Em setembro de 1941, uma horda de revoltosos atacou o Hotel Continental de Kiev e o quartel-general alemão na cidade. A truculência habitual pôs tudo nos eixos algum tempo depois, mas um homem viu, em meio àquele desespero, a oportunidade para tirar um velho sonho do papel.

Otto Schmidt nasceu em Kiev, mas era alemão. Diferentemente do governador, com quem tinha trânsito livre, tratava os ucranianos humanamente. Chegava a admirá-los - ao menos no futebol. Schmidt era torcedor inveterado do Dínamo Kiev, um dos principais do país, cujos campeonatos esportivos foram abolidos desde a chegada dos nazistas.

Saudoso do escrete, Schmidt empregou, em sua padaria, todos os ex-jogadores do Dínamo que passavam por seu caminho - começando pelo goleiro Nikolai Trusevich, que ajudou a encontrar os demais.

O empresário estava em plena busca pelos antigos ídolos quando houve o ataque ao quartel nazista. Schmidt, então, propôs ao governador Koch a realização de um campeonato de futebol. Seria a forma perfeita para levantar o moral do Reich após as investidas "terroristas". A Alemanha montaria uma equipe entre os soldados que estavam à serviço na Ucrânia. Seus adversários seriam forças de outros países aliados a Hitler - Hungria, Romênia, Itália e Eslováquia. E a padaria, claro, também teria sua seleção.

Koch comprou a ideia, mas com ressalvas. Como o nome Dínamo Kiev fora criado por comunistas, a padaria entraria em campo de embalagem nova - nascia, assim, o FC Start. Alguns jogadores da equipe ucraniana também foram barrados, supostamente por envolvimento com atos terroristas.

Recusa em fazer a saudação nazista

Os pitacos do governador não atrapalharam o baile do Start, que, com seus atletas ex-profissionais e de condicionamento físico razoável, superou sem dificuldades os adversários - um deles foi pisoteado por 14 a 1. Até chegar à partida contra a Alemanha, com direito a Goëring na arquibancada.

O encontro não começou bem. O escrete da padaria entrou em campo de vermelho - uma cor sensível para os alemães, antibolcheviques como eram. Os ucranianos tampouco fizeram a saudação nazista. No lugar de "Heil Hitler", gritaram "Fizkult - ura, ura, ura!", uma tradicional saudação soviética antes das partidas de futebol.

Ao início potencialmente bélico seguiu-se uma partida tensa, mas leal. Segundo uma testemunha ouvida por Riordan, o pesquisador britânico, "os times apertaram as mãos, posaram para uma fotografia juntos e foram para casa".

Algum tempo depois, com o triunfo já esquecido, um funcionário da padaria pôs vidro em uma remessa de pães destinada a oficiais nazistas. A sabotagem foi percebida pelos militares, que invadiram a fábrica e mataram 300 pessoas - entre elas, cinco atletas do FC Start. Nem os esforços diplomáticos de Schmidt conseguiram deter o massacre.

Em novembro de 1943, Koch e seus comandados tiveram de bater em retirada. O Exército soviético, que vinha obtendo sucessivas vitórias sobre as forças de Hitler, finalmente retomou Kiev. Mas, ao menos na padaria, a mudança não foi motivo de comemoração. Logo após chegar à cidade, a polícia secreta de Stalin foi ao estabelecimento e prendeu os boleiros sobreviventes do FC Start, acusados de "colaboração".
"Os atletas do Jogo da Morte tiveram sorte", escreveu Riordan. "Em vez de matar estes 'colaboradores', a polícia secreta e os líderes comunistas locais inventaram um mito."

De presos a heróis

Riordan apurou que alguns jogadores ficaram até quatro meses presos. Nesse período, a propaganda soviética criou uma nova versão dos acontecimentos do Zenith Stadium. Uma partida banal transformou-se em símbolo da bravura esperada de todos os comunistas. E os novos heróis nacionais estavam proibidos de contar a verdade - eles só puderam sair da prisão após concordarem em divulgar a fantasia concebida pelo Kremlin.

A versão stalinista é, até hoje, a mais conhecida do episódio - e a responsável pelo apelido macabro por que é conhecido o jogo. Segundo ela, a equipe da padaria era composta por atletas esfomeados, um retrato fiel do que era a população ucraniana durante o domínio nazista. Os alemães, por sua vez, estavam representados pela seleção da Luftwaffe, a Força Aérea do Reich. Jogadores talentosos, experientes e nutridos.

Além da diferença física, o árbitro, no relato stalinista, não se destacava pela neutralidade. Era um oficial do serviço secreto nazista, que, antes do jogo, desceu ao vestiário ucraniano para deixar claro o que deveria acontecer em campo: "Vençam e morram, percam e sobrevivam". Durante a partida, apitou, à toa, diversas vezes em que a equipe da padaria chutava a gol, invalidando os lances.

Apesar da ameaça e do juiz inescrupuloso, a Ucrânia teria encarado o desafio como uma grande exaltação patriótica. Assim, bicou para longe as combinações e despachou a seleção alemã com uma vitória por 5 a 3. Alguns jogadores pagaram com a vida: foram torturados, ou levados a campos de concentração, ou os dois.
"Como o nariz de Pinóquio, o mito cresceu e cresceu", conta Riordan. "Os sobreviventes da partida foram recebidos como heróis até mesmo na República Democrática Alemã (que integrava o bloco soviético). Mas a história inteira nunca será conhecida, uma vez que o último jogador morreu em 1998."